As máscaras de Salazar
“Saibam que não tenho medo de morrer de medo.” (Salazar em resposta às pressões dos aliados durante a II Guerra Mundial)
“Saibam que não tenho medo de morrer de medo.” (Salazar em resposta às pressões dos aliados durante a II Guerra Mundial)
Para que o mito sobreviva é preciso desconstruí-lo. A imagem
de um Salazar austero, rigoroso e distante dos jogos da política, encontra
neste livro o contraponto de um velhinho encantador, um ancião de fortíssima
personalidade e energia e, tal como Miguel Torga, interroga o autor sobre o
andamento das vindimas. Um homem rural, apegado aos valores do campo – os bons
valores que estão na génese da identidade portuguesa – que percebe como ninguém
a alma triste dos portugueses. Que ignora muito do que é feito em seu nome. Que
sugere a fuga de Cunhal e é surpreendido pelo assassinato do general Humberto
Delgado, notícia que acolhe com desagrado. É esse académico que, não querendo,
se transforma num homem providencial. “Tem todo o ar de lhe ser indiferente
estar, ou ir; em todo o caso, está. Está a tanto tempo, e tão tranquilamente,
como se ameaçasse nunca mais deixar de estar.” (citando Salazar)
Fernando Dacosta, acreditado como correspondente da imprensa
internacional, transforma-se, por via da dona Maria, em assíduo de S. Bento, e
consequentemente num quase confidente de Salazar. O autor não se assume como um
homem da situação. Não fui eu quem escolheu a época do Salazarismo para
existir, desabafa. Reclama ter transportado ao forte de Peniche, com gasolina à
sua custa, muitos familiares de presos políticos. Acaba mesmo por ser despedido
da Europa-Press (afeta à Opus Dei), por não ter, em política e costumes,
comportamentos correctos. Teve a sorte de nunca a PIDE ter desconfiado desta
visão pouco convencional que o autor protagonizava.
Fernando Dacosta esclarece logo na nota de abertura que este
livro se situa num outro plano que não o de livro de história, biografia ou
ensaio. Estamos perante um livro de memórias cujo relato bebe no testemunho
oral, sem a necessidade formal da prova documental. Muitas das afirmações
atribuídas a Salazar são conhecidas, algumas bebidas na entrevista de Salazar a
António Ferro.
Salazar surge como um ímpar estratega que nos mantém fora da
guerra e preserva as colónias. Até a sua decisão de alimentar a Guerra Colonial
se baseia na crença, partilhada pelos militares, de que um terceiro conflito
mundial aconteceria ainda na década de 60. Esta visão que lhe permite ler os
tempos e detém a volúpia da estratégia, fracassa em Goa. Estando na posse da
informação de que não seria possível defender militarmente a Índia portuguesa,
decide forçar o conflito para desacreditar o pacifista Neru. Ordena que as
tropas defendam o território até ao último homem. Perante a passividade e o
desinteresse internacional assiste à rendição das forças portuguesas,
praticamente sem resistência. O massacre que esperava e com o qual estabeleceria
um precedente na defesa das restantes colónias, não acontece. O grande
conhecedor da natureza humana e o hábil manipulador de estratégias
internacionais, falha redondamente; embora esta não seja a versão do livro.
A tese de que Salazar fora surpreendido pelo assassinato do
general Humberto Delgado não colhe com o facto de encontrarmos entre os
perpetradores, Rosa Casaco, um dos elementos da sua guarda pretoriana. Fica
difícil conceber que tal tenha sido possível sem o seu conhecimento. O
envolvimento de alguém que lhe era próximo, pode, contudo, apontar para uma
operação que não teria como objetivo inicial a eliminação física do general.
Fernando Dacosta oscila entre a admiração pelo estadista e a
verdade mais tenebrosa do regime. Não alimenta dúvidas em relação a Salazar:
Tudo nele parece dúplice, contraditório, ao mesmo tempo sensível e cínico,
casto e pervertido, campónio e manhoso, piedoso e despótico, ingénuo e
perverso, medíocre e genial, íntegro e desgraçado.
Salazar está aqui neste livro por inteiro, mais em lenda do
que em relato histórico, e através do testemunho de Fernando Dacosta entramos
na intimidade possível, nas suas máscaras e nas máscaras do próprio autor. O
homem que se confundia com o Estado Novo, que ajudou a formatar, foi um grande
conhecedor da natureza humana e manipulador de vontades, sonhos e aspirações.
Percebeu como ninguém a forma de se perpetuar no poder, para o que contou com o
aparelho repressivo do Estado e não só. Falhou também, mais do que o mito
consente. Caiu um dia, sem se ter preparado para isso.
Quando caiu, Salazar não passava de uma estátua fora do
tempo, um ícone sem celebrantes nem rituais.
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