domingo, 10 de dezembro de 2017

AS MÁSCARAS DE SALAZAR - Fernando Dacosta


As máscaras de Salazar

“Saibam que não tenho medo de morrer de medo.” (Salazar em resposta às pressões dos aliados durante a II Guerra Mundial)

Para que o mito sobreviva é preciso desconstruí-lo. A imagem de um Salazar austero, rigoroso e distante dos jogos da política, encontra neste livro o contraponto de um velhinho encantador, um ancião de fortíssima personalidade e energia e, tal como Miguel Torga, interroga o autor sobre o andamento das vindimas. Um homem rural, apegado aos valores do campo – os bons valores que estão na génese da identidade portuguesa – que percebe como ninguém a alma triste dos portugueses. Que ignora muito do que é feito em seu nome. Que sugere a fuga de Cunhal e é surpreendido pelo assassinato do general Humberto Delgado, notícia que acolhe com desagrado. É esse académico que, não querendo, se transforma num homem providencial. “Tem todo o ar de lhe ser indiferente estar, ou ir; em todo o caso, está. Está a tanto tempo, e tão tranquilamente, como se ameaçasse nunca mais deixar de estar.” (citando Salazar)

Fernando Dacosta, acreditado como correspondente da imprensa internacional, transforma-se, por via da dona Maria, em assíduo de S. Bento, e consequentemente num quase confidente de Salazar. O autor não se assume como um homem da situação. Não fui eu quem escolheu a época do Salazarismo para existir, desabafa. Reclama ter transportado ao forte de Peniche, com gasolina à sua custa, muitos familiares de presos políticos. Acaba mesmo por ser despedido da Europa-Press (afeta à Opus Dei), por não ter, em política e costumes, comportamentos correctos. Teve a sorte de nunca a PIDE ter desconfiado desta visão pouco convencional que o autor protagonizava.


Fernando Dacosta esclarece logo na nota de abertura que este livro se situa num outro plano que não o de livro de história, biografia ou ensaio. Estamos perante um livro de memórias cujo relato bebe no testemunho oral, sem a necessidade formal da prova documental. Muitas das afirmações atribuídas a Salazar são conhecidas, algumas bebidas na entrevista de Salazar a António Ferro.

Salazar surge como um ímpar estratega que nos mantém fora da guerra e preserva as colónias. Até a sua decisão de alimentar a Guerra Colonial se baseia na crença, partilhada pelos militares, de que um terceiro conflito mundial aconteceria ainda na década de 60. Esta visão que lhe permite ler os tempos e detém a volúpia da estratégia, fracassa em Goa. Estando na posse da informação de que não seria possível defender militarmente a Índia portuguesa, decide forçar o conflito para desacreditar o pacifista Neru. Ordena que as tropas defendam o território até ao último homem. Perante a passividade e o desinteresse internacional assiste à rendição das forças portuguesas, praticamente sem resistência. O massacre que esperava e com o qual estabeleceria um precedente na defesa das restantes colónias, não acontece. O grande conhecedor da natureza humana e o hábil manipulador de estratégias internacionais, falha redondamente; embora esta não seja a versão do livro.

A tese de que Salazar fora surpreendido pelo assassinato do general Humberto Delgado não colhe com o facto de encontrarmos entre os perpetradores, Rosa Casaco, um dos elementos da sua guarda pretoriana. Fica difícil conceber que tal tenha sido possível sem o seu conhecimento. O envolvimento de alguém que lhe era próximo, pode, contudo, apontar para uma operação que não teria como objetivo inicial a eliminação física do general.

Fernando Dacosta oscila entre a admiração pelo estadista e a verdade mais tenebrosa do regime. Não alimenta dúvidas em relação a Salazar: Tudo nele parece dúplice, contraditório, ao mesmo tempo sensível e cínico, casto e pervertido, campónio e manhoso, piedoso e despótico, ingénuo e perverso, medíocre e genial, íntegro e desgraçado.

Salazar está aqui neste livro por inteiro, mais em lenda do que em relato histórico, e através do testemunho de Fernando Dacosta entramos na intimidade possível, nas suas máscaras e nas máscaras do próprio autor. O homem que se confundia com o Estado Novo, que ajudou a formatar, foi um grande conhecedor da natureza humana e manipulador de vontades, sonhos e aspirações. Percebeu como ninguém a forma de se perpetuar no poder, para o que contou com o aparelho repressivo do Estado e não só. Falhou também, mais do que o mito consente. Caiu um dia, sem se ter preparado para isso.


Quando caiu, Salazar não passava de uma estátua fora do tempo, um ícone sem celebrantes nem rituais.



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